Espaços Público e Privado: como a ombreira de uma porta

 

A Renovar a Mouraria foi sempre sobre Espaço Público, por isso esse não poderia deixar de ser o tema da primeira Newsletter Mouraria Comunica, a propósito do arranque de dois novos projetos: o Residência Secundária e o Mouraria Participa. O texto que se segue é a continuação de um texto exclusivo da Mouraria Comunica. 

Queres receber as nossas reflexões mensais no e-mail e ficar a par do que está a acontecer? Subscreve a nossa Newsletter e junta-te à comunidade.

 

 


                                                                                                           

                                                                                                   

 

 

O que é Espaço Público?

Podemos começar por dizer que o Espaço Público é o espaço do Encontro. Mas por ser permeável a várias “lentes”, é um conceito complexo e em constante tensão com o Privado. Se pedirmos emprestado um olhar académico sobre Espaço Público, o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas identificou algumas destas “lentes”: o Espaço Público enquanto lugar de formação das opiniões e das vontades políticas, que garante a legitimidade do poder, o Espaço Público enquanto quadro no qual se debatem questões prático-morais e políticas e no qual se formam a opinião e a vontade coletiva (segundo a teoria da democracia), o Espaço Público enquanto mediador entre o Estado e a Sociedade Civil, entre o poder político-administrativo e os cidadãos (segundo a teoria do Estado Social e a análise político-administrativa) e o Espaço Público enquanto lugar de uma comunicação democrática (os meios de comunicação social como suporte). Como a filosofia está na vida, no nosso dia-a-dia, podemos encontrar estas visões todos os dias nas ruas da nossa cidade e dos bairros que habitamos, para viver, trabalhar, passear, ou simplesmente atravessar. E, por isso, podemos olhar para a Mouraria e perguntar: quão democrático é o uso do bairro? Quem afirma nele as suas vontades? Ainda há uma vontade coletiva? Ou estamos demasiado separados, partilhando apenas um mesmo espaço sem partilharmos conversas, encontros, discussões, sem forjar uma vontade e uma ação coletiva? Quando refletimos sobre a nossa missão de integração social e criamos um Laboratório de Mediação Intercultural Comunitária, usamos a palavra «intercultural» precisamente por isto: precisamos de trabalhar pela interculturalidade e não apenas pela multiculturalidade, porque não basta que diferentes culturas frequentem um mesmo espaço, é preciso que elas se encontrem e dialoguem para que surjam dinâmicas de cooperação e integração. 

 

Mas regressemos ao ponto de partida: definir Espaço Público. 

O Espaço Público existiu sempre em relação ao Espaço Privado

Na Grécia Antiga, o espaço privado e o espaço público estavam mais demarcados, com o primeiro a ser sinónimo do espaço doméstico, ao qual estavam remetidas as mulheres e com o espaço público a concretizar-se em expoente máximo na Ágora, onde os cidadãos, apenas homens atenienses, se reuniam para debater os assuntos da cidade. Eram chamados de oikos desputas. Ou seja, há algo inevitavelmente político nos usos dos espaços, nos corpos que habitam esses espaços e nos corpos que são segregados, deixamos à margem. Todo o espaço é um espaço social. Quem tem poder, ocupa o espaço público, apropriando-se dele, reconhecendo-o como seu. E reúne-se, debate, age. Ou seja, o espaço concretiza-se como espaço público quando é tomado por práticas sociais participativas e de cooperação entre quem o habita: 

A questão do comum encontra um eco crescente no debate público. E não tenho certeza se isto é algo pelo qual nos tenhamos sempre que felicitar. Frequentemente, ela é reduzida a uma simples questão do bom uso dos recursos, uma administração responsável e sustentável dos bens comuns. Ela é, desta forma, despojada da sua verdadeira densidade política e desposada do seu alcance crítico. Lamento também que, com demasiada frequência, as questões do comum sejam discutidas sem referência às práticas sociais sem as quais, porém, a própria ideia do comum se evapora – práticas de cooperação, de exploração em comum ou até de democracia radical. O comum ou é político ou não existe. Ou é rebelde ou não existe- Ou é cooperação ou não existe.Le commum oppositionnel, pascal Nicolas-Le Strat

Quais são, então, os critérios para a criação de espaços públicos de qualidade? Há sete dimensões apontadas por Jacobs e Appleyard em 1987 e que ainda hoje são pertinentes: a vivência, a identidade e o controlo, o acesso a oportunidades, imaginação e distração, a autenticidade e significado, a vida pública e comunitária, a autoconfiança urbana e o bom ambiente para todos. 

Em próximos Clubes, vamos Manifestar reflexões mais específicas sobre o impacto da crise da habitação, ao sabor da gentrificação e da turistificação, nestes diferentes aspetos da qualidade do espaço público, assim como na alteração da composição populacional do bairro. 

                                                                                                   

 

Como a ombreira de uma porta

Pode ser interessante não associar Espaço Público a exterior e Espaço Privado a interior, sob pena de nos ficarmos por uma visão mais redutora destes conceitos. As cooperativas de habitação, que fazem uma gestão comunitária de alguns espaços que tradicionalmente se tornaram privados são um dos exemplos mais óbvios dessa fluidez. Na cooperativa de habitação La Borda, em Barcelona, um exemplo de sucesso frequentemente mencionado nas cooperativas de habitação de propriedade coletiva, as máquinas de lavar a roupa encontram-se fora dos espaços privados e íntimos, criando uma lavandaria comunitária. Mas existem outros enlaces, mais subtis e inadvertidos, entre público e privado, que, como a ombreira de uma porta, são lugares de não-limite

“A Mouraria sempre me fascinou pela sua capacidade de fazer o ” dentro” “fora”, conta Alba Presencio, mestranda em Estudos Urbanos no ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa. “Normalmente definimos o privado dentro de quatro paredes e um telhado, sem um olhar externo no conforto do lar. O privado como recôndito e encriptado, isto é, o privado como uma atividade interior. Em contraste, o público é normalmente definido por ser colocado onde o vento tem a capacidade de misturar palavras e ações, como aberto e partilhado; à vista. O público como um ato exterior. Contudo, o privado não está restrito ao interior nem o público ao exterior. Enredam, esbatem e entrelaçam-se. Conversas íntimas entre as escadinhas das Olarias ou algumas cadeiras dos vizinhos que vão além do limite do interior como casa para construir “ruas de sala de estar” que estendem os hábitos quotidianos e privados a um acompanhamento comum. A mouraria tem a capacidade de demonstrar que o privado não é sempre interior e que o público não é sempre exterior”, explica. 

                                                       

 

Reivindicar o direito ao espaço privado tanto quanto ao espaço público

Se é essencial reivindicarmos o direito ao Espaço Público (com a transformação que tal implica na abordagem que fazemos à nossa atual democracia, já que impele a uma participação mais profunda e organizada da Sociedade Civil, face ao Estado e aos Mercados, levando-nos a repensar os atuais modelos de participação e representação), quando falamos em reivindicar o direito à cidade, há um outro lado que geralmente fica na sombra, mas que, como foi aprofundado acima, está sempre em relação com o Espaço Público – O Espaço Privado. Como aponta Alba, “o mais importante é reivindicar o espaço privado, no sentido de espaço íntimo, mais do que no seu espeto económico. Muitas vezes em bairros como este, devido à gentrificação, os espaços íntimos não são possíveis. As pessoas não têm privacidade para as suas relações e o seu estar”. E lança a questão: “porque é que estamos a usar o espaço público como espaço de intimidade?”

Só podemos terminar esta primeira carta-encontro multiplicando as perguntas. 

Onde começa e termina a Mouraria? Quem habita as suas ruas e largos? E as casas – quem e como vive quem vive no bairro, hoje? Que propriedade têm as pessoas sobre as suas casas? Quem se encontra e onde? Quem interage com quem, quem se ignora?

a

Magazine made for you.

Featured:

No posts were found for provided query parameters.

Elsewhere: